De ontem e de hoje | Os parques
por Licínia Quitério
Os parques das cidades e vilas assemelham-se a bosques em miniatura, sulcados por discretos lagos, semeados de flores das quatro estações, orgulhosos de uma ou outra escultura a espreitar por entre o verde, abençoados pelos cantos de pássaros, surpreendidos por pequenos mamíferos fugidios.
Entusiasmados com a oferta de tais elementos, não faltam artistas que os pintem, fixando aquela cortina oblíqua de sol coado, o tapete de folhas multicolor, o banco, claro, o banco a servir de resguardo aos eternos namorados, ou aos velhos a recapitularem em sossego memórias de outros parques.
De geometrias à maneira dos jardins franceses ou ingleses, os parques exibem simetrias mais ou menos perfeitas e, se bem atentarmos, encontraremos uns degraus musgosos a convidar para recantos escusos, mais sombrios, visitantes que procuram saborear a solidão ou, quem sabe, alguma clandestinidade.
Os poetas, esses, elegem os parques para seus prazeres e devaneios. Deslizam, com elegância e sem pressas, apurando os sentidos, a reconhecer o território. Afagam o tronco de uma árvore, olham a copa e, se fosse da sua natureza, decerto trepariam e ficariam muito serenos, deitados no garfo de dois ramos. Esmagam nos dedos uma folha de lúcia-lima e cheiram-na, aspiram-na, com sensualidade disfarçada. Pontapeiam uma pinha caída no saibro do caminho, para depois, mais adiante, a apanharem e a arremessarem, como um gato faz com um novelo. Os gatos, só aparecem de noite. É o seu tempo dos parques. É também o tempo de muitos outros bichos que de dia viram os homens sem se deixarem ver. Os mistérios dos parques só os gatos conhecem e nunca os revelarão. Os poetas sabem disso, mas continuarão a deslizar nos seus parques inventados, imitando-os, na esperança de um dia saberem ler o que trazem inscrito nas pupilas.
Disse António Ramos Rosa: “O tempo nos parques gera o silêncio do piar dos pássaros, do passar dos passos, da cor que se move ao longe.”
Quanto a mim, posso falar de um parque que me acolheu a infância e outras idades maiores e enumerar recordações que se acendem mal me atrevo a premir um certo recanto secreto da memória. Quantas vezes revejo, no meu filme antigo, uma árvore com os nomes de namorados esculpidos a navalha no grande tronco do qual, em determinada época, exsuda uma seiva avermelhada a que se chamou sangue de dragão e que esteve na origem do nome: dragoeiro. E julgo ouvir o restolhar de folhas na manta morta da floresta, igual ao que acontecia quando, munidos de pequenos paus, procurávamos com avidez os frutos caídos. E que bem sabiam, comidos ali mesmo, em seu tempo próprio, fossem avelãs ou castanhas, ou medronhos vermelhinhos. E recordo o vulto daquele sujeito bisonho que caminhava, ligeiramente curvado, de mãos atrás das costas, rente aos muros circundantes, de olhos no chão, evitando cruzar-se com outras pessoas.
E muito mais diria, mas fico por aqui a rebobinar a fita onde guardei o meu parque, ou melhor, os meus verdes anos.
Licínia Quitério
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.
Os parques podem ser apenas uns pátios em que velhas vizinhas fazem crescer vasos de begónias ou sardinheiras, uns pequenos jardins no meio de cidades, os lugares são os da mente. Os poetas são os donos dos lugares afáveis, as crianças também.
Bettips
Belo como os verdes anos costumam ser recordados mesmo quando não foram assim tão frescos ou assim tão verdes.
Belo como tudo quanto a Licínia Quitério escreve.
E com o que vai alimwntando a nossa fome num mundo cada vez mais árido, menos verde, mais hostil e cinzento.
Precisamos tanto de Licínias…